Registro civil na Itália

Uma dúvida muito comum é sobre o começo do registro civil na Itália. Quando começa? A resposta, como quase tudo, é depende.

Na Península Itálica, historicamente havia o registro religioso apenas. Os batismos, casamentos e mortes eram anotados pelos vigários. O começo da obrigatoriedade da anotação desses registros se dá em 1563, com o Concílio de Trento, que foi um concílio da Igreja Católica em meio ao movimento histórico conhecido como Reforma Católica ou Contrarreforma.

A Reforma Católica, como movimento histórico, se aplica para todos os católicos no mundo mas sua implantação foi gradual, atingindo locais diferentes em épocas diferentes.

Por exemplo: na cidade de Borso del Grappa, na província italiana de Treviso, os registros paroquiais começam em 1598. Já os registros da paróquia Santa Maria em Arcugnano, na província de Vicenza, começam em 1612.

Em compensação, na paróquia Saint-Christophe, do município homônimo na província de Valle d’Aosta, há registros de batismo desde 1532. Em Pisa, o primeiro batismo é de Alessandra, nascida em 18 de junho de 1457. Em Florença, há registros de batismo desde 1450. Mas antigamente os registros eram mais pobres, como pode ser ver:

Registro de batismo em 1525, de Filippo Cavalcanti, imigrante ao Brasil

O batizado em questão, Filippo Zanobio, filho de Giovanni di Lorenzo, ficou conhecido para a eternidade como Filippo Cavalcanti, era um nobre florentino que imigrou ao nordeste brasileiro no século XVI e é patriarca da família Cavalcanti no Brasil.

Os registros religiosos continuaram desde então até hoje. Por séculos, foram o registro oficial, com valor legal. No entanto, tudo mudaria.

Em 1789, quando os corações dos franceses são inflamados pelo fervor revolucionário, essa inquietação era mal-vista pelos vizinhos. No noroeste da atual Itália, havia o Ducato di Saboia, liderado pelo duque Vittorio Amadeo III (que, não por acaso, era também o rei da Sardenha, cargo que ocupava separadamente do duque de Savóia).

Em 1792, Vittorio Amadeo declara guerra à França revolucionária, que responde invadindo o Ducado e anexando em 1792 parte de seu território, mais notadamente a cidade de Nizza (hoje chamada de Nice e pertencente à França). Na metade de 1793, devido à uma revolta em Lyon, as tropas francesas têm de recuar, e os piemonteses recuperam as cidades. Mas isso duraria pouco, com a França reconquistando a região em setembro de 1793 – e anexando ela oficialmente em novembro de 1793. Em 1794, os tropas francesas começam a seguir planos e estratégias de um jovem general corso chamado Napoleão Bonaparte (de origem italiana!).

Com Napoleão cada vez mais no comando das tropas francesas, o avanço sobre as terras italianas continua. A data de anexação à França (ou aos estados fantoches franceses) varia de acordo com a região, mas em 1809, praticamente toda a península itálica estava sobre domínio napoleônico.

Um dos princípios mais básicos da Revolução Francesa era o secularismo agressivo. Portanto, era contraditório deixar às igrejas a importante missão de registrar nascimentos, casamentos e mortes. Portanto, passa a existir o registro civil, que era feito na prefeitura (comune). O começo do registro civil em cada parte da Itália depende do ano. Em algumas regiões da Ligúria, já começa em 1796. Já no sul do país, começa em 1809. Vale lembrar que ficaram de fora dessa conquista a Sicília, Sardenha, o Trentino Alto-Ádige e a Venezia Giulia. Nessas regiões, o registro civil não foi implantado. Por motivos óbvios, esses registros são chamados de stato civile napoleonico.

Em 1815, após a Batalha de Waterloo, Napoleão é (novamente) deposto. Agora, o que fazer com esse registro civil?

Na região da Calábria e suas províncias Cosenza, Reggio Calabria, Catanzaro, Crotone e Vibo Valentia, esse registro é mantido intacto. As pessoas continuaram a registrar civilmente seus nascimentos, casamentos e óbitos desde 1809 até hoje.

Para a região da Basilicata e suas províncias de Matera e Potenza, vale o mesmo que a Calábria. Também para a Puglia e suas províncias Bari, Barletta-Andria-Trani, Brindisi, Foggia, Lecce e Taranto, a mesma regra. O mesmo para a Campânia e suas províncias de Avellino, Benevento, Caserta, Napoli e Salerno. No entanto, vale lembrar que no caso de Benevento, isso vale apenas para o interior da província – a capital (também chamada Benevento) era parte do Estado Pontifício e portanto ali o registro civil começa em 1861.

Na região de Molise e suas províncias Campobasso e Isernia, também começou em 1809 e não foi descontinuado, tal qual na região de Abruzzo e suas províncias de Teramo, Chieti, Pescara e L’Aquila.

Registro de casamento de D. Pedro II, em Nápoles

Na região do Lácio, as coisas ficam mais complexas. A região é composta por cinco províncias: Roma, Viterbo, Frosinone, Latina e Rieti.

Frosinone é uma província “nova”, criada apenas em 1927, com partes da província de Roma e partes da província de Terra di Lavoro (antigo nome da província de Caserta). Na parte criada da província de Roma, o registro civil é descontinuado e só volta a existir em 1871, enquanto é intacto na parte proveniente de Caserta (os finados circondario di Sora e circondaria di Gaeta).

Tabela dos comuni de Frosinone

Na tabela acima, os comuni de Frosinone separados por origem.

A província de Rieti também é nova: data de 1927, criada majoritariamente da Úmbria (e portanto nesta parte, o registro civil recomeçando em 1861) e uma parte menor da província de L’Aquila, cujo registro é ininterrupto deste os tempos napoleônicos. Na tabela a seguir, os comuni separados pela província de origem. O Archivio di Stato di Rieti também guarda alguns registros paroquiais.

Na província de Latina, a situação é similar à de Frosinone, sendo também a província uma criação recente, parte romana e parte de Terra di Lavoro (do circondario di Gaeta).

Tabela dos comuni de Latina

Na tabela acima, os comuni de Latina. Na província de Roma, o registro civil é descontinuado em 1815 e voltou a existir em 1871. Já na província de Viterbo, cessa em 1815 e recomeça em 1871.

Na região de Marche, os registros civis em todas suas províncias (Ascoli Piceno, Fermo, Macerata, Ancona, Pesaro e Urbino) começam em 1808, cessam em 1814 e recomeçam em 1866, mas desde 1861 até 1865 há uma espécie de registro misto civil-religioso que será maelhor explicado mais à frente, na explicação sobre o registro civil no Piemonte.

Na região da Úmbria, tanto em Perugia como em Terni, há uma situação específica: os livros de registro religioso foram tomados pelo estado italiano, portanto, embora o registro civil ali recomece em 1861 (após começo em 1808 e interrupção em 1815), há em posse de arquivos públicos registros vitais desde 1522.

A região da Toscana é especialmente confusa. O maior país da regiã era o antigo Grão-Ducado da Toscana, que corresponde aproximadamente nas províncias de Pistoia, Prato, Firenze, Arezzo, Grossetto, Livorno e Pisa, embora tenha territórios em outras províncias, listadas na tabela a seguir:

Registro de casamento do Grão-Ducado da Toscana

No Grão Ducado registro civil cessa em 1814 mas é retomado em 1816.

Os outros dois países existente na Toscana eram o Ducado de Lucca e o Ducado de Massa-Carrara. No Ducado de Massa-Carrara, que corresponde aproximadamente à parte da Massa-Carrara, o registro civil cessa em 1815, e só volta em 1852, quando já era parte do Ducato di Modena e Reggio.

Já no Ducato di Lucca, que não havia registro civil desde 1815 (foi descontinuado), ele foi dividido em dois: a maior parte foi para a Toscana, e ali o registro civil volta em 1851; e as regiões de Camporgiano, Careggine, Castelnuovo di Garfagnana, Castiglione di Garfagnana, Fabbriche di Vergemoli, Fosciandora, Gallicano, Minucciano, Molazzana, Piazza al Serchio, Pieve Fosciana, San Romano in Garfagnana, Sillano Giuncugnano, Vagli Sotto Villa Collemandina passaram para Modena, onde o registro civil volta em 1852. Esta região é conhecida como Garfagnana.

Os municípios lucchesi de Altopascio, Barga, Forte dei Marmi, Montecarlo, Pietrasanta, Seravezza, Sorbano (distrito do município de Lucca) e Stazzema nunca fizeram parte do Ducado de Lucca, sempre foram toscanos, ali o registro civil existe ininterrupto desde tempos napoleônicos.

Já os municípios lucchesi de Bagni di Lucca, Borgo a Mozzano, Camagore, Capannori, Coreglia, Lucca, Massarosa, Pescaglia, Porcari, Viareggio e Villa Basilica foram incorporados tardiamente ao Grão Ducado da Toscana e ali o registro civil, após a era napoleônica, volta em 1851. A tabela a seguir lista todos os municípios com datas de volta do registro civil.

Tabela dos comuni lucchese

Já na Emília-Romana, também varia muito, devido à história complexa da região. Em toda a região, o registro civil começa em 1806, por imposição napoleônica. As províncias de Piacenza e Parma fizeram parte do Ducato di Parma e Piacenza e ali o registro civil nunca parou.

Em Modena e Reggio Emilia, os registros começam em 1806 e cessam em 1815. Só voltam em 1852, quando o Ducato di Modena e Reggio volta a ter registro civil. Há três exceções: os comuni de Guastalla, Luzzara e Reggiolo, na província de Reggio Emilia que até 1847 fizeram parte do Ducato di Parma e Piacenza e foram dados para Modena. Nesses três locais, o registro civil continuou até 1847, cessou e voltou em 1852. Esse registro é chamado de stato civile austroestense, pois a região era governada pela família Este.

Exemplo de registro de nascimento austroestene
Exemplo de registro de nascimento parmegiano

Nas província de Forli-Cesena, Ravenna, Rimini, Ferrara e Bologna o registro civil recomeça em 1866, mas havia um proto-registro civil desde 1861 que será discutido mais adianta quando for discutido o Piemonte/Ligúria/Aosta. Na província de Forli-Cesena, alguns municípios eram toscanos e seguem regras diferentes.

Já na região do Vêneto, em todas suas províncias (Padova, Rovigo, Belluno, Treviso, Venezia, Verona) o registro civil é descontinuado em 1815 e volta em setembro de 1871, com exceção de três comuni da província de Belluno: Colle Santa Lucia, Livinallongo del Col di Lana, Cortina d’Ampezzo, que para fins desta postagem, deverão ser tratados como parte do Trentino Alto-Ádige.

Na região de Friuli Venezia-Giulia, onde há as províncias de Gorizia, Trieste, Udine e Pordenone, cada lugar deve ser analisado de forma individual. Parte da região não foi conquistada por Napoleão e portanto ali não foi começado o registro civil em 1804-1811. Essa região, conhecida como Litoral Austríaco, é composta das províncias de Gorizia, Trieste e os seguintes municípios da província de Udine:

Aiello del Friuli, Aquileia, Campolongo al Torre, Cervignano del Friuli, Chiopris-Viscone, Fiumicello, Malborghetto Valbruna, Pontebba, Ruda, San Vito al Torre, Tapogliano, Tarvisio, Terzo di Aquileia, Villa Vicentina e Visco.

Nesta parte, o registro civil começa apenas em 1924, quando, depois da Primeira Guerra Mundial, ela é anexada à Itália. O resto da província de Udine e toda a província de Pordenone tem a exata mesma situação que o Vêneto: o registro civil começou com Napoleão, cessou em 1815 e voltou em 1871.

A região de Trentino Alto-Ádige, mais os municípios belluneses de Colle Santa Lucia, Livinallongo del Col di Lana, Cortina d’Ampezzo seguem situação igual ao do Litoral Austríaco: nunca foram conquistados por Napoleão, que nunca implantou ali o registro civil. Continuaram sob domínio austríaco até 1920, quando passaram a ser italianos, começando em 1924 o registro civil.

Na Lombardia, o registro civil é quase uniforme em todas as suas províncias: Bergamo, Brescia, Como, Cremona, Lecco, Lodi, Mantova, Milano, Monza e Briana, Pavia, Sondrio e Varese. Em todas estas, o registro civil napoleônico cessa em 1815 e recomeça em 1866. A única exceção é a metade oriental da província de Mantova, cujos registros param em 1815 e volta em 1871, tal qual o Vêneto.

A Sicília e a Sardenha se mantiveram livres do domínio napoleônico e não tiveram registro civil implantado essa época. Mas na Sicília é decidida a criação do registro civil em 1820, enquanto na Sardenha apenas em 1866. Desde a criação, nas duas ilhas italianos, nunca houve descontinuidade de registro.

Registro de óbito de Giuseppe Garibaldi, em 1882, na Sardenha

Nas três regiões italianas do Piemone, Valle d’Aosta e Ligúria há o registro civil mais antigo da Itália. Devido à proximidade com a França, foram as primeiras regiões invadidas – e portanto, as primeiras com registros civis implantados. A data de implantação varia de lugar para lugar: enquanto em Gênova começa em 1796, em outras regiões começa anos mais tarde:

Mas com a queda de Napoleão, os registros são descontinuados. Após a reorganização da Europa em 1815, essa região passa a fazer parte do Reino da Sardenha. Na década de 1830, o Reino da Sardenha decide modernizar e em 1837 é publicado o Statuto Carloalbertino, uma espécie de constituição do reino sardo. Tinha essa nome porque foi feito pelo rei Carlos Alberto e esse registro civil é chamado de stato civile carloalbertino. Esse estatuto previa, entre outras medidas, que os padres, pastores e rabinos deviam enviar ao governo uma cópia do livros de registro de batismo (nascimento, no caso de judeus), casamento e morte.

Exemplo de nascimento do stato civile carloalbertino

Publicado por ghpedroso

Genealogista, acadêmico de História e pesquisador da região de Campos Novos-SC, com foco em pessoas de etnia ucraniana e polonesa

21 comentários em “Registro civil na Itália

  1. Adorei conhecer seu trabalho! Tenho todo um ramo de pesquisa no Piemonte, começando no Império Napoleonico. Recebi de “herança” o nada consta do trisavô, documento rico em informações. Muito grata!

    Curtido por 1 pessoa

  2. Meu bisavô Carlos Ossola, filho de Giovanni Ossola e Maria Luigia Bressanni, nasceu em 1857, não acho a cidade de nascimento deles.

    Sou Leila Ossola
    leila.ossola@gmail.com
    Rio de Janeiro RJ Bradil

    Ele fez algumas obras no Bradil o Carlos Ossola e escrevo um livro sobre ele

    to

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    1. Boa noite Leila. A combinação de sobrenomes Ossola e Bressani nos leva para a Lombardia, bem provavelmente na província de Varese ou Milano. Já tentou pedir pesquisa em registros militares em Varese?

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  3. Bom dia

    Obrigada por responder.
    Não pesquisei nos registros informados.
    Meu bisavô veio ainda rapaz para o Brasil com a mãe e morreu em 1904 mo Rio.
    Tenho o casamento dele em Pelotas e o óbito no Rio mas em ambos, só consta “italiano”.
    Leila Ossola

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  4. Oi Gustavo, primeiro parabéns pelo trabalho. Foi o único conteúdo em profundidade sobre o assunto que encontrei, já depois de procurar muito. Uma dúvida, meu trisavô nasceu em 1862 em Borgo a Mozzano. Porém, os registros só iniciam a partir de 1866. Sabe onde posso encontrar o registro dele? Sobrenome Papera Obrigado. Sob

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  5. Olá bom dia!!!
    Procuro informações sobre meu bisavô que nasceu em 1900 chamado Paschoal Deraco.
    Precisava histórico para começa a caminhar em busca do meu visto. Nem sei por onde começo. Pode me ajudar ?

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      1. Oi Gustavo,

        Parabéns pelo artigo, excelente!
        Você sabe mais sobre o Stato Civile Carloalbertino na Romagna, mais especificamente em Cesena e onde se encontram os registros?

        Obrigado!

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      2. Em Bologna, isso está no tribunale. Vale a pena contatar os tribunais de Forli e Cesena para ver se podem lhe informar se há algo similar ali também.

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  6. Gustavo, parabéns, que conteúdo precioso!! Preciso localizar a certidão de meu bisavô Hermano Bennati em Bondeno, FE. Poderia me dizer se procuro no comune ou paróquias?

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      1. Gustavo, gostaria de pedir a gentileza de retirar o meu nome completo no comentário de agradecimento, por favor.

        Obrigada! 😊

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  7. Fantástico seu trabalho, não tinha ideia dessas informações, estou pesquisando família “Novi” “do Piemonte, mas não consegui ir além de meus avós.

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